quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Bioarte - Estéticas de Corpos Mutantes / Edvaldo Souza Couto [1] Silvana Vilodre Goellner [2]

RESUMO: O artigo analisa a construção social do corpo contemporâneo por meio de obras de três artistas: o australino Stelarc, a francesa Orlan e o anatomista alemão Gunther von Hagens. Discute como a body art e a bioarte promovem a crescente simbiose entre a carne e a técnica, o orgânico e o inorgânico. Enfatiza que nas sociedades ocidentais novas configurações corporais invadem o cenário urbano, evidenciando quão tênue são as fronteiras entre a natureza e o tecnológico potencializado. As produções destes artistas estudados nos revelam que somos cada vez mais mutantes, híbridos, cuja estética inquieta e fascina ao colocar em evidência outras formas de pensar o humano e o tecnológico em cada um de nós mesmos. Vivemos a era das metamorfoses físicas e mentais aceleradas por meio das cirurgias, implantações e transplantações de próteses no humano. Essa parece ser a verdadeira revolução do presente: colonizar e modificar todo o corpo com as tecnologias médicas e cibernéticas. O resultado é a progressiva valorização das formas provisórias, da incompletude corporal. Estar sempre aberto a novas modificações passa a ser a condição para a promoção da beleza, da juventude e da longevidade perseguidas a todo custo. O artigo conclui, em acordo com esses artistas, que agora o corpo, vivo ou morto, nada mais é que uma performance e que cada um deve se aperfeiçoar sempre em cena.

PALAVRAS-CHAVE: Bioarte. Estética. Corpo. Tecnologias. Stelar. Orlan. Hagens.

As artes no corpo e as artes do corpo integram a construção do humano. Transpassam tempos e culturas, movimentam o imaginário, fazem pulsar diferentes rituais e simbologias. Revelam o tempo onde foram elaboradas, reconstroem seus passados da mesma maneira com que projetam o futuro. Como um subgênero das performances artísticas, a body art surge no final dos anos 1960 conquistando seu apogeu nos anos 1970 ao propor a recusa do objeto de arte como um bem mercantil em favor de uma arte imaterial, da idéia, teoricamente invendável. Modelada pelo artista a partir do seu próprio corpo, era importante acentuar o desprendimento da carne, cuja performance traduzida em arte, não é passível de ser adquirida, reproduzida, tornar-se propriedade de outrem. Piercings, perfurações, cortes, suspensões, pinturas, adornos, marcas que traduzem um modo de fazer arte cuja tela é o corpo, território permeado de distintas significações. Com o desenvolvimento tecnológico, característico da sociedade contemporânea, tais intervenções foram adquirindo diferentes níveis de detalhamento e sofisticação possibilitando a emergência de exibições que ultrapassam as fronteiras da pele, adentrando o interno do corpo, seus músculos, órgãos e fluidos. Mediadas pela técnica, novas configurações corporais invadem o cenário urbano evidenciando o quão tênue são as fronteiras entre a natureza e a cultura, entre o biológico e o tecnologicamente potencializado. Seres mutantes, híbridos contemporâneos cuja estética desassossega ao mesmo tempo em que põem em ação outras formas de pensar o humano em cada um de nós.
Neste cenário emergem corpos transformados em arte, reconfigurados pela biotecnologia e pela cibernética tais como os de Sterlac e Orlan, matérias vivas a tensionarem representações convencionais de beleza, saúde, finitude e limites corporais. Corpos como os esculpidos pelo anatomista Gunther von Hagens, imagens perpetuadas de serem outrora vivos e em movimentação. Corpos que borram as fronteiras entre o orgânico e o inorgânico, expressões adensadas pela bioarte, manifestação híbrida do natural e do artifício.

Sterlac [3] e a absolescência do corpo

Uma vertente da filosofia da técnica – representada por Marshall McLuhan, desenvolvida por Paul Virilio e Jean Baudrillard e escolhida por Stelarc – diz que a tecnologia é um prolongamento do humano e supõe a reversibilidade do corpo num processo do seu próprio desaparecimento. Essa filosofia subtende que a técnica é sempre superior ao homem porque ela pressupõe que o corpo é alguma coisa de imperfeito e fraco que precisa ser construído tecnicamente perfeito e potente. Nessa tarefa de equipar tecnicamente o corpo para que ele adquira propriedades características das máquinas, como velocidade, resistência e precisão, os experimentos e as mixagens são considerados bem-vindos. As próteses e as micromáquinas devem ser implantadas no interior da pele para revitalizar a corporalidade, mostrando que o corpo nada mais é que uma embalagem para as máquinas.
Esse diálogo do homem com a tecnologia não é recente. A história humana se confunde com a história da técnica. Segundo Izagirre

[...] desde que os primeiros homínidas liberaram suas mãos para poder usá-las como instrumento, isto é, como ´interface` para comunicar seu pensamento com o processo de transformação dos objetos, começa o processo tecnológico, processo que juntamente com o aparelhamento da linguagem transformará todo o pensamento. Passamos da fase de atuar com a mão como instrumento direto, quer dizer, ´manipulando` o que está ao nosso redor, à mão cibernética teledirigida e teleprocessada. (IZAGIRRE, 1997, p. 7)
Essa evolução se revela de modo exemplar no projeto da mão robótica do artista australiano Stelarc que, ao utilizar as tecnologias próprias da medicina, da robótica e da realidade virtual, expande seus parâmetros corporais, pois entende que as máquinas, além de ampliar nossos músculos, membros, sentidos e partes do cérebro, promovem um diálogo continuo com o humano. Em pauta está a integração cada vez mais acentuada entre a exterioridade e a interioridade, orgânico e o inorgânico, o natural e o artificial. É esse processo que passa a ser encenado no corpo do artista, com o objetivo de demonstrar a condição de mesclagem do corpo com as técnicas, a progressiva naturalização dos artifícios instalados ou implantados no sujeito. O intuito é explorar os limites expressivos, sensoriais e materiais da corporalidade por meio de dispositivos tecnológicos. Para Stelarc, o importante é destacar o quanto o ritmo das máquinas condiciona e estetiza o funcionamento de músculos, membros e ondas cerebrais.
Ao adotar esse fundamento teórico para o seu trabalho revela sua concepção de que o corpo concebido fora das tecnologias está em desuso, é algo que não funciona mais de modo adequado às novas exigências performáticas dos tempos atuais. Tornou-se, portanto, obsoleto! Sterlac defende que o corpo deve irromper e transgredir os seus limites biológicos, culturais e planetários. É hora de se perguntar se um corpo bípede, que respira, com visão binocular e um cérebro de 1.400cm3 é uma forma biológica adequada. Ele não pode dar conta da quantidade, complexidade e qualidade de informação que acumulou; é ilimitado pela precisão, velocidade e poder da tecnologia e está biologicamente mal-equipado para se defrontar com seu novo ambiente extraterrestre. O corpo é uma estrutura nem muito eficiente, nem muito durável; sua performance é determinada pela idade. É suscetível a doenças e está fadado a uma morte certa e iminente. Seus parâmetros de sobrevivência são muito limitados – o corpo pode sobreviver somente semanas sem comida, dias sem água e minutos sem oxigênio. A ausência de projeto modular do corpo e de seu sistema imunológico que reage exageradamente dificulta a substituição de órgãos defeituosos. Considerar o corpo obsoleto em forma e função pode ser o auge da tolice tecnológica, mas mesmo assim ele pode ser a maior das realizações humanas. (STELARC, 1997, p. 54).
É a presença da máquina que pode agora devolver algum sentido ao corpo, garantir a sua funcionabilidade. Como a tecnologia é cada vez mais miniaturizada e biocompatível, ela pousa sobre o corpo, nele é implantada fazendo com que a dinâmica corporal seja cada vez mais determinada pela presença das máquinas. O artista está convencido de que a estrutura fisiológica do corpo determina a sua inteligência e as suas sensações. Razão pela qual faz uso da tecnociência para modificar essa estrutura criando, assim, uma percepção alterada da realidade corporal. Por meio de sua estética protética extrapola e busca novas trajetórias corporais. Como um escultor genético, reestrutura e hipersensibiliza o corpo humano tornando-se mais do que um artista performático: Sterlac é um arquiteto dos espaços interiores do corpo, um provocador de mutações, exemplar transformador da paisagem do humano.
Assim o faz em escultura no estômago. Nesta performance o artista projeta uma escultura para ser engolida e alojada em seu próprio estômago dilatado. O espaço interno do corpo agora abriga técnica e arte e o estômago deixa de ser apenas um órgão com funções digestivas para tornar-se, também, um ambiente estético.
A Tecnologia invade o corpo e funciona dentro dele não como um substituto protéico, mas como um ornamento estético. A estrutura está comprimida dentro de uma cápsula de 50mm X 14mm e amarrada à sua caixa de controle; ela é engolida e introduzida no estômago. O estômago é inflado com ar, usando um endoscópio. Um painel de circuitos lógicos e um servomotor abre a escultura e a estende, usando um cabo flexível e extensível, até a dimensão de 80mm x 50mm. Uma campainha piezelétrica toca em sincronia com uma lâmpada que pisca dentro do estômago. A escultura é uma extensão/retração, que emite sons e é auto-iluminada. (Ela é fabricada usando-se metais para implante, como titânio, aço inoxidável, prata e ouro). A escultura retrai-se para dentro de sua cápsula a ser removida. Como um corpo, não se observa mais a arte, não se age mais como arte, mas se contém arte. O corpo oco torna-se hospedeirto, não para um eu ou uma alma, mas simplesmente para uma escultura (STELARC, 1997, p. 57).
Para Stelarc, estamos no fim da filosofia e da fisiologia humanas e o homem não é mais definido pelo natural nem pelo animal, mas pela tecnologia, onde o pós-humano se define pela fisiologia biotécnica. Por isso, ele se posiciona em cena como uma parte da própria máquina. Para estender as capacidades corporais pluga seu corpo nos computadores, acopla em seu braço um outro braço mecânico, uma mão robótica, instala seus olhos laser, utiliza sistemas sonoros, e o seu corpo passa a funcionar de acordo com o ritmo das máquinas. Ele encarna o híbrido homem-máquina no qual estamos todos nos tornando. O destino ciborgue que progressivamente nos seduz e acaricia. Segundo o australiano, é para tornarem-se mais compatíveis com as máquinas que os humanos estão sendo tecnicamente reprojetados. E aqui ele enfatiza o obsoletismo do modelo “psicocorpo” e a urgência do “cibercorpo”.
O psicocorpo não é nem resistente, nem confiável. Seu código genético produz um corpo que muitas vezes funciona mal e se cansa rapidamente, possibilitando apenas parâmetros tênues de sobrevivência e limitando sua longevidade. Sua química carbônica gera emoções superadas. O psicocorpo é esquizofrênico. O CIBERCORPO não é um sujeito, mas um objeto – não um objeto de inveja, mas um objeto para a engenharia. O cibercorpo fica eriçado com eletrodos e antenas, ampliando suas capacidades e projetando sua presença para locais remotos e para dentro de espaços virtuais. O cibercorpo torna-se um sistema estendido – não para meramente sustentar um eu, mas para intensificar operações e iniciar sistemas inteligentes alternados (STELARC, 1997, p. 59).
O híbrido homem-máquina, para Stelarc, produz uma nova concepção de corpo e de movimento. Em suas performances ele procura aliar a experiência física intensificada pelo uso das próteses com a expressão artística; no caso, a dança. A performance Substance (1990) mostra que é possível entrecruzar quatro movimentos: o improvisado pelo corpo; o da mão robotizada, controlada por sinais dos músculos do estômago e das pernas; o programado, do braço artificial; e, por fim, o do braço esquerdo que reage independente da sua vontade, por intermédio das descargas da corrente elétrica que por ele passa. Essas experiências estendem e aumentam o corpo, visual e acusticamente. Esses experimentos remetem à performance Corpo amplificado, olhos laser e terceira mão, que começou a ser criada em 1986.
Os processos do corpo amplificado incluem ondas do cérebro (EGG), músculo (EMG), pulsação (PLETHYSMOGRAM) e fluxo sanguíneo (DOPPLER FLOW METER). Outros transdutores e sensores monitoram o movimento dos membros e indicam a postura do corpo. O campo sonoro é configurado por zumbidos, trinados, cliques, baques, bipes – de sinais disparados randômicos, repetitivos e rítmicos. A mão artificial, presa ao braço direito como uma adição e não uma substituição protética, é capaz de executar movimentos independentes, sendo ativada por sinais de EMG dos músculos abdominais e da perna. Ela tem um mecanismo para abrir e fechar a mão; o pulso pode girar 290 graus nos dois sentidos e um sistema de feedback táctil para um ´sentido de tato´ rudimentar. Enquanto o corpo ativa seu manipulador suplementar (a terceira mão), o braço esquerdo real é controlado a distância – posto em ação por dois estimuladores musculares. Eletrodos colocados nos músculos flexores e bíceps fazem com que os dedos se curvem, os pulsos se dobrem e o braço suba. O acionador do movimento do braço regula o ritmo da performance, e os sinais do estimulador são utilizados como fontes sonoras, assim como o som do motor do mecanismo da terceira mão. O corpo se move numa instalação luminosa estruturada e interativa que pisca e brilha, respondendo a reagindo às descargas elétricas do corpo – às vezes sincronizadas, às vezes se contrapondo. A luz não é tratada como uma iluminação externa ao corpo, mas como uma manifestação dos ritmos do corpo. A performance é uma coreografia de movimentos controlados, restritos e involuntários – de ritmos internos e gestos externos. É uma interação do controle fisiológico com a modulação eletrônica. Das funções humanas com a ampliação da máquina (STELARC, 1997, p. 56).
Desse modo, ao questionar sobre o design do corpo humano, Stelarc se mostra convencido do quanto ele está defasado. Na atualidade, as tecnologias são mais pulsantes que o organismo. Por isso, ele procura acentuar a perda e o desaparecimento do corpo considerado mais natural, ao mesmo tempo em que aponta a necessidade urgente de se construir a corporalidade por meio das micromáquinas. Essa nova cartografia revela que o corpo vive seus últimos ensaios antes da estréia da evolução pós-humana, seu mais recente destino. A evolução pós-humana é a programada, controlada, expandida e continuamente atualizada por meio de próteses e softwares de alta tecnologia. Quando as nanotecnologias biocompatíveis invadem e redesenham o corpo, está em andamento uma nova espécie singular. Nesse estágio, em pleno desenvolvimento e realização, torna-se cada vez mais difícil distinguir o que é prótese no humano e o que é carne na máquina. Interligado a vários objetos técnicos, Stelarc atua como um elemento de passagem elétrica de uma para outra máquina. Seu corpo, uma resistência, sobrevive, reage, se movimenta por meio das correntes elétricas. A máquina lhe dá choques, literalmente, e devido a eles seu corpo se movimenta. Seus movimentos, por sua vez, de maneira reflexa, vão passar através dele e afetar outra máquina. Ele próprio é uma máquina. É coerente com Stelarc deixar-se queimar pela corrente que a máquina descarrega, ativa e potencializa em seu corpo. Sem essa tecnologia, sem essa relação fusional, é impossível para o artista tomar consciência de si mesmo, da sua corporalidade.
Revela-se, na arte de Sterlac, a revolução das transplantações das próteses no humano da qual fala Virilio (1992, pp. 31-33). Depois de ter colonizado a natureza e todos os espaços, agora é a vez de se colonizar, por meio das tecnologias, a própria corporalidade. Para que o corpo funcione sempre, mostre ininterruptamente a sua vitalidade, precisa se confundir com as máquinas. Ele deve ser esvaziado de todas as suas vísceras inúteis para poder ser um melhor receptáculo para as tecnologias.

Orlan [4] e a performance cirúrgica de uma estética da transformação

Orlan desenvolve sua arte baseada na crença de que o corpo sempre foi mutável, o que não significa afirmar que se deva esperar que a lentidão da natureza o transforme. As técnicas médicas, especialmente, as cirurgias estéticas, permitem a aceleração deste processo onde as mutações corporais podem ser realizadas e visualizadas em tempos cada vez menores. Para a artista, a sala cirúrgica é o espaço mais emblemático para retratar as políticas tecnológicas do corpo contemporâneo: local que atesta nossa incompletude ao mesmo tempo em que promove sua mutação em prol da beleza, perfeição e juventude. É nesse cenário que a obra de Orlan ganha especial destaque. Ao metamorfosear-se, através do uso de apuradas técnicas cirúrgicas, revela o quanto a sociedade contemporânea, mediatizada pelos avanços tecnocientíficos, incita os sujeitos a recriarem constantemente seus corpos recorrendo a intervenções diversas tais como a lipoaspiração, implante de silicone, cirurgia plástica, acoplagem de próteses, etc.
Para Orlan é importante utilizar a sua matéria orgânica como material principal de suas intervenções artísticas: “Dei meu corpo para a arte”, ela diz. Cortar, abrir, cutucar, implantar, fechar, costurar e cicatrizar partes do corpo são atos performáticos. Enquanto muitos exibem uma nova imagem corporal após uma intervenção cirúrgica, Orlan exibe a operação como arte. Mais importante que o corpo reconfigurado pelas plásticas é o momento em que a transformação acontece.
Em Orlan, como escreve Dery,

[...] cada operação constitui uma performance: a paciente, o cirurgião e as enfermeiras usam trajes de alta costura, desenhados em alguns casos por Paco Rabanne, e a sala de operações está adornada com um crucifixo, frutas de plásticos e enormes painéis com os nomes dos patrocinadores da cirurgia, no mesmo estilo kitsch dos letreiros de cinema dos anos cinqüenta. O comportamento de Orlan, que se encontra somente sob o efeito de anestesia local, se parece mais o de uma diretora de cinema do que de uma paciente; durante uma operação em Nova York, em 1993, leu fragmentos de um livro de psicanálise e se comunicou por telefone e fax com milhares de espectadores do mundo inteiro que acompanhavam a cirurgia ao vivo, via satélite. (DERY, 1998, p. 183)
A artista serve-se de sua corporalidade como uma espécie de encontro entre a performance metamorfósica e bodybuilding que denomina carnal art para diferenciá-la da body art. O culto ao corpo e a construção física da suposta perfeição, se converteu num fato habitual em nossa época. A arte de Orlan ressignifica essa representação, pois evidencia que não basta apenas aperfeiçoar o corpo: há que modificá-lo!
A carnal art – embora inserida no que se denomina de body art – torna-se pertinente para este tipo de intervenção. Refere-se a um trabalho de auto-retrato em sentido clássico, mas realizados com os meios tecnológicos característicos do nosso tempo onde o corpo oscila entre a desfiguração e a reconfiguração. O corpo é entendido, então, como uma realidade a ser modificada e, ao contrário da body art, a carnal art não deseja a dor, não é uma forma de purificação nem mesmo de redenção. Ela não se interessa pelo resultado plástico final, mas pela operação-performance da qual resulta um corpo modificado, objeto de debate público e, por essa razão, exibido na mídia. Para Orlan, não faz mais sentido representar o corpo, é necessário mudá-lo.
Pode parecer estranho que uma expressão artística vinculada à necessidade de intervenções cirúrgicas no corpo não deseja a dor. Mas de fato é assim. Num momento de uma operação, desperta, Orlan declarou ao seu público: “Sinto faze-los sofrer, mas lembrem-se, eu não sofro nada. Só sofro como vocês: quando vejo as imagens” (1995).
Para a performance A obra mestra absoluta: a reencarnação de Santa Orlan, a artista se submeteu a sete operações. Primeiramente em um computador, remodelou a imagem do seu rosto em busca da beleza ideal renascentista. Com a imagem considerada perfeita, convocou equipes de cirurgiões que lhe modificariam o rosto em busca das formas ideais resultantes da seguinte mixagem: “A testa da Mona Lisa, de Leonardo; os olhos de Psique, do escultor e pintor francês Gerone; o nariz de Diana, atribuída à Escola de Fontainebleau; a boca de Europa, de Boucher e, por último, o queixo da Vênus de Botticelli”. (GUTIÉRREZ, 1997, p. 37)

A obra prima absoluta: a reencarnação da santa Orlan

Após as cirurgias o rosto da artista passa a ser uma síntese da história da pintura. Uma síntese que inclui o sangue, o glamour e a imagem popular excêntrica de Orlan. Tudo isso inserido num contexto publicitário e midiático. Mas não é apenas isso. Sua pele se converte numa fronteira entre o passado e o futuro, o privado e o público, o interior e o exterior, o corpo e a técnica, o pensamento e a ação, a arte e a vida. Em seu corpo, todas essas referências se confundem. Seu trabalho tem claramente três etapas. Primeira: desenha seu novo rosto no computador; segunda: materializa-o por meio de cirurgias plásticas; terceira: transmite as operações diretamente de galerias, museus e hospitais, via satélite, pela internet.
A artista afirma que não transforma seu rosto e o seu corpo para ficar mais jovem ou mais bela. O que interessa não é a juventude ou a encarnação efêmera de um determinado cânone de beleza, mas a mutação física que esses modelos vão lhe proporcionar. O que deseja é uma mudança completa da imagem do corpo como potência de atualização. Ela explica por que escolheu essas referências:

Vou escolher esses modelos não pelos cânones de beleza que se supõe que representam, mas por causa das histórias que estão associadas a elas. Escolho Diana porque se recusa a submeter-se aos deuses ou aos homens, é altiva e agressiva, dirige um grupo; a Mona Lisa porque é uma luz da História da Arte, um ponto de referência, não porque seja bela segundo os critérios de beleza contemporâneos, mas porque detrás dessa mulher existe um homem que hoje sabemos ser o próprio Leonardo Da Vinci, um auto-retrato escondido na imagem da Mona Lisa (o que nos desperta a questão da identidade). Não quero parecer-me a Vênus de Botticelli. Não quero parecer-me a Europa de Gustavo Moreau (não é meu pintor favorito). Escolhi Europa porque é parte de um quadro inacabado, como é a maioria! Não quero parecer-me a Diana do quadro da Escola de Fontainebleau. Não quero parecer-me a Mona Lisa... como se disse e se continua dizendo nos jornais e na televisão apesar dos meus múltiplos desmentidos e furiosas correções (ORLAN apud LÓPEZ, 1998, pp. 34-35).
Concluído um percurso, realizada uma performance, a artista parte para uma outra. Assim, é possível ter várias versões de corpo, uma configuração nova para cada trabalho. Lopéz descreve outra performance de Orlan:

A sétima performance desta série aconteceu em Nova Iorque, em 1993, baseada no conceito de onipresença e realizada pelo doutor Marjorie Cramer; foi difundida via satélite da galeria Sandra Gehring, de Nova Iorque ao Centro Pompidou, de Paris, ao McLuhan Center, de Toronto, e outra dezena de lugares em contato interativo que permitia aos espectadores de todos os países intervir na operação com seus comentários e perguntas que a própria Orlan respondia quando o momento cirúrgico lhe permitia. Entre outras intenções, queria tornar público e transparente um ato tão íntimo como uma cirurgia. Na galeria promotora da obra foram instalados quarenta e um painéis correspondentes aos quarenta dias de exposição e de recuperação pós-operatória, mais um que exibia a fotografia do “corpo-projeto-partida”. A cada dia essa foto de partida era exibida ao lado da “artista-obra” tal como estava naquele dia: primeiro totalmente vendada, depois com hematomas de todas as cores que lhe iam aparecendo e, ao final, o resultado: a foto do último dia.. E a instalação estava completa. (LOPÉZ, 1998, p. 35)
Em 1996 a artista apresentou outra “obra” intitulada Este é o meu corpo, este é o meu software, onde fez desaparecer o seu corpo. Criou uma cabeça virtual, sem corpo, que falava com a Orlan real e com o público. Para ela, o corpo real estava obsoleto, por isso podia desaparecer. Tudo o que resta é o corpo cultural, criada pela arte, ciência e tecnologia.
Para Orlan, recriar o corpo por meio das tecnologias médicas avançadas é uma maneira de lutar contra o que é inato, o inexorável, a natureza. Interferir no corpo é blasfemar contra o que é imposto à humanidade. Seu trabalho realça a condição do corpo como uma opção do modelo corporal escolhido pelo sujeito. Afinal, as manipulações genéticas e as cirurgias plásticas estão se tornando comum para um número cada vez maior de pessoas, ultrapassando a exibição dos corpos espetacularizados pela mídia: compõem desejos e sonhos de milhares de pessoas que vivem no anonimato das cidades.
As intervenções cirúrgicas de Orlan revolucionam o estudo do corpo na sociedade tecnológica. Primeiro, nega-o como signo da identidade, depois, transforma o corpo passivo, que padece, em ativo, que atua; por fim, questiona os limites entre ciência e arte. Em todo momento interroga o que é a natureza hoje e demonstra que a natureza também é um produto da técnica. Lançando mão de anestesias, micro-cirurgias e analgésicos, a artista dessacraliza a cirurgia plástica, e a revela como técnica exemplar da mutação corporal e artística.

Gunther von Hagens: Uma estética para corpos mortos

Corpos mortos exibidos em museus. Corpos perpetuados pelo anatomista alemão Gunther von Hagens[5] cuja exibição esbarra nos limites entre a arte e o puro espetáculo que muitos consideram mórbido, uma espécie de versão contemporânea do gabinete de monstruosidades. Utilizando-se de uma técnica que denomina de plastination, Hagens, substitui os líquidos e os tecidos molhados do organismo por matérias artificiais, como borracha de silicone, resina de epóxi e poliéster, em procedimento especial de vácuo, permitindo a preservação quase que absoluta das aparências dos tecidos do corpo humano, como seus músculos, ossos e veias bem definidos. O resultado é que as células e também os relevos das superfícies ficam inalterados, mesmo a nível microscópio. Assim, o visitante pode ver detalhes e o interior da pele através da complexidade tridimensional do corpo. Em 2002, num teatro londrino, o médico dissecou um cadáver para uma seleta platéia que disputou ferozmente cada ingresso. Com o intuito declarado de revelar a beleza do corpo humano após o término da vida, Hagens diz se inspirar em certos exemplos famosos na própria história da arte. Uma de suas referências é Leonardo da Vinci, que usou cadáveres como modelo para seus desenhos anatômicos, além de Rembrandt, que em 1632, apresentou o professor de anatomia no quadro A aula de anatomia do Dr. Tulp, em pleno processo de dissecação pública de um cadáver, cercado de amigos e atentos curiosos. Aliás, a sua performance lembra o trabalho de Rembrandt até mesmo pelo uso de certas peças indumentárias, como o chapéu preto e o colete de Beuys.
As obras de Hagens, em que pesem todas as polêmicas que as cercam, são extremamente perturbadoras. Não apenas porque perpetuam anatomias decompostas, mas porque parecem levar às últimas conseqüências um processo de dessacralização dos corpos humanos, tão em voga no nosso tempo quando milhares de pessoas tentaram e tentam liberar seus corpos de antigos vínculos religiosos, geográficos, temporais, morais e, mais recentemente, genéticos. Não se trata essencialmente de um mero prazer ou curiosidade pelo mórbido nem atração pela morte. Pela ciência ou pela arte, o que parece reivindicado é o direito de conhecer os corpos por dentro, de não se contentar com a pele, de revirar e revelar todos os segredos. Romper fronteiras, superar limites, deixar o corpo transparente, sem zonas de sombras ou invisibilidade.
Com isso, o estatuto do corpo passa da exclusão para a completa exibição. Se durante muitos séculos, sob o domínio de uma determinada tradição filosófica-religiosa o corpo sofreu todo tipo de exclusão, tinha que ser preservado, inviolado pela ciência e pelas técnicas; nas últimas décadas passou a ser objeto de culto, reconhecido como espetáculo magnífico, protagonista de um total e radical exibicionismo, nas ciências, nas artes e, principalmente, na mídia. O conhecimento do corpo coincide cada vez mais com a exibição do corpo, ainda que sem vida e a arte de Hagens mostra que o corpo morto continua performático, cultuado, negociado e, sobretudo, ininterruptamente exibido. Se o corpo vivo de muitos artistas pôde ser visto como obra de arte, agora o corpo morto também ganha o mesmo estatuto. Expor cadáveres plastinados pode ser chocante, indecente ou vil para muitas pessoas; uma estupidez ou uma banalidade. Também pode ser educativo e mesmo artístico. Na verdade, tudo se tornou possibilidade e, no reino das possibilidades, tudo poder ser, pode vir-a-ser, pode deixar de ser. O corpo, vivo ou morto, é performance, mídia, acontecimento.

Ciência e tecnologia: reconfiguração das artes e dos corpos

A completa e complexa exibição do corpo não se desenvolve sem uma intensa exploração comercial das imagens e dos próprios organismos. Nesse campo estão inseridos artistas que dizem doar o seu corpo para a arte, pois ao produzirem suas obras e performances retratam muitas das interferências técnico-científicas sob a pele. Artistas como Stelarc e Orlan cujos corpos são convertidos, eles mesmos, em objetos de arte. Artistas como Gunther von Hagens que ao esculpir corpos alheios dessacraliza-os conferindo visibilidade ao que, comumente reside nas sombras da putrefação.
Não se desenvolve também sem uma minuciosa intervenção técnica e científica cujo aprimoramento torna possível a exibição desses corpos camaleônicos, protagonistas de uma forma de fazer arte que se encarrega de mostrá-los em seus diversos processos de transformação. Na atual circulação sideral de corpos e imagens corporais estas artes revelam que os corpos vivos ou mortos adentram o mercado da arte: são cuidados, embelezados, maquiados, reconstruídos, exibidos e comercializados seja sob a forma de pagamento de ingressos e do consumo direto de imagens reais, seja da venda de souvenirs, catálogos, postais, camisetas, vídeos e relicários. Denúncia social, apogeu performático, eliminação das diferenças entre o corpo orgânico e o corpo artístico, escaneamento e virtualização dos organismos essas experiências artísticas nos dizem que é preciso, a todo o momento, reinventar e visibilizar o corpo. Torná-lo performático e fotogênico, não apenas o seu exterior, mas igualmente no interno de sua pele. Tudo deve ser mostrado, visto, comercializado e cultuado. Assim, as fronteiras do corpo são progressivamente vencidas e ultrapassadas tanto na ciência e na técnica, quanto na arte. O que não quer dizer que os mistérios são completamente revelados. Sempre que algumas fronteiras são vencidas outras tantas aparecem, novos mistérios nos seduzem. E o corpo continua fonte de crescentes e incansáveis buscas e decifrações.

Referências Bibliográficas

DERY, Mark. Velocidad de escape. La cibercultura em el final del siglo. Madrid: Edições Siruela, 1998.
GUTIÉRREZ, L. C., (1997) “Vídeo-Culturas y Ciber-Culturas: Profanado la pantalla, nuestra mente e nuestros cuerpos”. En . Rekalde, J. et all .Lo tecnológico em la arte. De la cultura vídeo a la cultura ciborg. Barcelona:Vírus Editorial, pp. 25-41.
HAGENS, Gunther von. Body worlds. The anatomical exhibition of real human bodies. Catalogue on the exibition. Heidelberg: Institut for plastination, 2002.
IZAGIRRE, J. R., “Anotaciones em los margenes de um arte cibernético”. En Rekalde, J. et all.Lo tecnológico em la arte. De la cultura vídeo a la cultura ciborg. Barcelona:Vírus Editorial, pp. 07-23.
LOPÉZ, Esther Moreno. Tu cuerpo es um campo de batalha? Feminismo y política ciborg. Espanha: Universidade Zaragosa, 1998.
ORLAN. Seduced and Abandoned. Women´s Art Magazine, 64, (1995)
STELARC. (1997) “Das estratégias psicológicas às ciberestratégias: a protética, a robótica e a existência remota”. Em Domingues, Diana (org). A arte no século XXI. A humanização das tecnologias. São Paulo: Unesp, pp. 52-62.
VIRILIO, P. Rat de laboratoire. Propôs recueillis par Jean-Yves et Alain Kruger. L´autre Jornal, 27, (1992): 09-14.

NOTAS
[1] Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia. Participa do grupo de pesquisa Educação, Comunicação e Tecnologias (FACED) ambos na UFBA. Atua nos Programas de Pós-Graduação em Filosofia e em Educação da UFBA e tem diversos trabalhos publicados nas áreas de Filosofia, Comunicação, Educação e Artes. Organizou o livro Corpos Mutantes: ensaios sobre novas (d)eficiências corporais, publicado pela Editora da UFRGS, 2006.
[2] Professora da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenadora do Grupo de Estudos sobre Cultura e Corpo (GRECCO – ESEF/UFRGS). Atua no Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano da UFRGS e tem diversos trabalhos publicados nas áreas de Educação e Educação Física. Organizou o livro Corpos Mutantes: ensaios sobre novas (d)eficiências corporais, publicado pela Editora da UFRGS, 2006.
[3] Artista australiano que, desde os anos 70, tem realizado diversas performances corporais. Mais informações em http://www.stelarc.va.com.au/photos/index.html
[4] Orlan é artista e professora-pesquisadora da Escola de Belas Artes de Dijon, França, desde 1990.
[5] Denominada Body Worlds ou Mundos do corpo – Fascinação das superfícies a exposição iniciou no Japão em 1996 e já foi vista por mais de 14 milhões de pessoas, em oito países. Conjunto que inclui uma mulher grávida de oito meses com o feto aparecendo em seu útero; um homem montado num cavalo, segurando seu próprio cérebro em uma das mãos; um mestre de esgrima, em posição de luta, com espada na mão; um ginasta pendurado em aros; um arremessador de dardo (www.bodywords.com).