terça-feira, 21 de setembro de 2010

Gênero e sexualidades numa perspectiva pós-estruturalista

Para que se compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres numa sociedade importa observar não exatamente seus sexos, mas sim tudo o que socialmente se construiu sobre os sexos. Nesse sentido, não são propriamente as características sexuais, mas é a forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico.
Ao dirigir o foco para o caráter fundamentalmente social, não há, contudo, a pretensão de negar que o gênero se constitui com ou sobre corpos sexuados, ou seja, não é negada a biologia, mas enfatizada, deliberadamente, a construção social e histórica produzida sobre as características biológicas. Como menciona Robert Connell (1995, p. 189), "no gênero, a prática social se dirige aos corpos". O conceito pretende se referir ao modo como as características sexuais são compreendidas e representadas ou, então, como são "trazidas para a prática social e tornadas parte do processo histórico".
Na medida em que o conceito afirma o caráter social do feminino e do masculino, obriga aquelas/es que o empregam a levar em consideração as distintas sociedades e os distintos momentos históricos de que estão tratando. Afasta-se (ou se tem a intenção de afastar) proposições essencialistas sobre os gêneros; a ótica está dirigida para um processo, para uma construção, e não para algo que exista a priori. O conceito passa a exigir que se pense de modo plural, acentuando que os projetos e as representações sobre mulheres e homens são diversos. Observa-se, ainda, que as concepções de gênero diferem não apenas entre as sociedades ou os momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade, ao se considerar os diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe, etc.) que a constituem.
A proposta é, então, entender o gênero como constituinte da identidade dos sujeitos, fazendo parte do sujeito, constituindo-o. Sujeitos que possuem identidades plurais, múltiplas; identidades que se transformam, que não são fixas ou permanentes, que podem, até mesmo, ser contraditórias. Nessa perspectiva, admite-se que as diferentes instituições e práticas sociais são constituídas pelos gêneros e são, também, constituintes dos gêneros. Estas práticas e instituições "fabricam" os sujeitos.
Antes de avançarmos, no entanto, talvez seja importante tentar estabelecer algumas distinções entre gênero e sexualidade, ou entre identidades de gênero e identidades sexuais. Se Michel Foucault foi capaz de traçar uma História da Sexualidade (2007), isso ocorreu pelo fato de compreendê-la como uma “invenção social”, ou seja, por entender que ela se constitui a partir de múltiplos discursos sobre o sexo: discursos que regulam, que normalizam, que instauram saberes, que produzem "verdades".

[...] a sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder. (FOUCAULT, 2007, p. 100)
As identidades sexuais se constituiriam, pois, através das formas como os sujeitos vivem sua sexualidade, seja com parceiros/as do mesmo sexo, do sexo oposto, de ambos os sexos ou sem parceiros/as. Por outro lado, os sujeitos também se identificam, social e historicamente, como masculinos ou femininos e assim constroem suas identidades de gênero. O que importa aqui considerar é que – tanto na dinâmica do gênero como na dinâmica da sexualidade – as identidades são sempre construídas, elas não são dadas ou acabadas num determinado momento, e estando sempre se constituindo, elas são instáveis e, portanto, passíveis de transformação.

Nenhuma identidade sexual — mesmo a mais normativa — é automática, autêntica, facilmente assumida; nenhuma identidade sexual existe sem negociação ou construção. Não existe, de um lado, uma identidade heterossexual lá fora, pronta, acabada, esperando para ser assumida e, de outro, uma identidade homossexual instável, que deve se virar sozinha. Em vez disso, toda identidade sexual é um constructo instável, mutável e volátil, uma relação social contraditória e não finalizada (BRITZMAN, 1996, p. 74, grifos da autora).
É possível pensar as identidades de gênero de modo semelhante: elas também estão continuamente se construindo e se transformando. Em suas relações sociais, atravessadas por diferentes discursos, símbolos, representações e práticas, os sujeitos vão se construindo como masculinos ou femininos, arranjando e desarranjando seus lugares sociais, suas disposições, suas formas de ser e de estar no mundo. Essas construções e esses arranjos são sempre transitórios, transformando-se não apenas ao longo do tempo, historicamente, como também se transformando na articulação com as histórias pessoais, as identidades sexuais, étnicas, de raça, de classe ...
Logo, homens e mulheres certamente não são construídos apenas através de mecanismos de repressão ou censura, eles e elas se fazem, também, através de práticas e relações que instituem gestos, modos de ser e de estar no mundo, formas de falar e de agir, condutas e posturas apropriadas (e, usualmente, diversas). Os gêneros se produzem, portanto, nas e pelas relações de poder.
No contexto do referencial teórico pós-estruturalista, fica extremamente problemático aceitar que um pólo tem o poder – estavelmente – e outro, não. Em vez disso, deve-se supor que o poder é exercido pelos sujeitos e que tem efeitos sobre suas ações. Torna-se central pensar no exercício do poder; exercício que se constitui por “manobras”, “técnicas”, “disposições”, as quais são, por sua vez, resistidas e contestadas, respondidas, absorvidas, aceitas ou transformadas. E importante notar que, na concepção de foucaultiana, o exercício do poder sempre se dá entre sujeitos que são capazes de resistir, pois, caso contrário, o que se verifica, segundo ele, é uma relação de violência.
De fato, Foucault (2008) acrescenta que se deve buscar observar o poder como uma rede de relações sempre tensas, sempre em atividade. Afinal, homens e mulheres, através das mais diferentes práticas sociais, constituem relações em constante negociação com avanços, recuos, consentimentos, revoltas, alianças. Portanto, o poder produz sujeitos, fabrica corpos dóceis, induz comportamentos.
Assim, quando afirmamos que as identidades de gênero e as identidades sexuais se constroem em relação, queremos significar algo distinto e mais complexo do que uma oposição entre dois pólos (masculino/feminino, heterossexualidade/homossexualidade); pretendemos dizer que as várias formas de sexualidade e de gênero são interdependentes, ou seja, afetam umas às outras.

Referências Bibliográficas

BRITZMANN, Déborah. O que é essa coisa chamada amor. Identidade homossexual, educação e currículo. Educação & Realidade, v. 21, n. 1, p. 71-96, jan./jul. 1996.
CONNELL, Robert W. Políticas da Masculinidade. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 185-206, jul./dez. 1995.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 18º ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2007.
______. Microfísica do Poder. 25a ed. Rio de Janeiro: Graal, 2008b.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997.