terça-feira, 21 de setembro de 2010

Corpos marcados, corpos em mutação - prof. Charles Ross

O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto a linguagem os marca e as idéias os dissolvem), lugar de dissociação do Eu (que supõe a quimera como análise da proveniência, está, portanto no ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo (FOUCAULT, 2008, p. 22).
Michel Foucault não foi o único, mas um dos autores que alertaram para a desnaturalização do corpo, para a constatação de que a história e as sociedades têm, por base, a “realidade” corpórea que é, ao mesmo tempo, complexa e heterogênea.
Na modernidade e na contemporaneidade, edificam-se relações de poder que têm como objetivo central a administração dos corpos, individual e social: “o poder penetrou no corpo, encontra-se exposto no próprio corpo” e produz efeitos sobre ele (FOUCAULT, 2008, p. 146). Em outras palavras, a potência dessa economia de poder, intitulada por Foucault de biopoder, reside no fato dela assumir as formas mais regionais e concretas e, dessa forma, atingir a realidade mais concreta dos corpos.
Tais relações de poder põem em circulação práticas discursivas e não-discursivas que, de acordo com interesses particulares, fazem a sua circunscrição em quadros de referência específicos. Tais práticas tomam corpo e tomam o próprio corpo em esquemas de comportamento, em conjuntos técnicos, em instituições que, atuando de forma articulada, operacionalizam a transmissão e a difusão de modos específicos de subjetivação.
Há, portanto, uma expressiva vontade de saber sobre os corpos, uma necessidade crescente de produzir saberes e acumular poderes sobre eles e de atrelá-los ao direito de majorar os níveis de prazer, de utilidade, de governá-los. Nesse sentido, é importante buscar apreender as condições de possibilidade que fazem emergir, em cada época, as relações e as oposições entre os corpos, suas designações e suas especificidades. Uma vez que para governar produzem-se técnicas de subjetivação, com o objetivo de produzir conhecimento sobre os corpos humanos, convém “pesquisar quais são as formas e as modalidades da relação consigo através das quais o indivíduo se constitui e se reconhece como sujeito” (FOUCAULT, 2006, p. 11).
No seu livro Tabu do Corpo, José Carlos Rodrigues (2006) afirma que o corpo traz em si a marca da vida social. Há uma preocupação em fazer imprimir nele, fisicamente, determinadas transformações de um repertório cujos limites não se pode definir. Arranhando, rasgando, perfurando, queimando a pele, imprimem-se cicatrizes-signos que são formas artísticas ou indicadores rituais de status. A origem dessas práticas é social: são signos de pertinência do grupo e de concordâncias com seus princípios.
Como salienta Guacira Lopes Louro (2003), os corpos são marcados de vários modos e estão inscritos social, simbólica e materialmente. Marcas distintivas, expressivas, sutis ou violentas, que podem ser infligidas pelo próprio sujeito ou pelo grupo social. Seja de quem for a iniciativa, é indispensável reconhecer que essa “marcação” tem efeitos. Uma multiplicidade de sinais, códigos e atitudes produz referências que “fazem sentido” no interior da cultura e que definem (pelo menos momentaneamente) quem é o sujeito. Tal marcação é:

[...] cotidiana; supõe investimento, intervenção. Processos que se fazem ao longo da existência de cada sujeito, de forma continuada e permanente. Processos que estão articulados aos inúmeros discursos que circulam numa sociedade e que podem ser compreendidos como pedagogias voltadas à produção dos corpos. Essas pedagogias são, usualmente, reiterativas das normas regulatórias de uma cultura: suas normas de gênero e sexuais, em especial. Elas não são, contudo, sempre convergentes ou homogêneas. Os sujeitos são alvo de pedagogias distintas, discordantes, por vezes contraditórias. Tudo isso torna cada vez mais problemática a pretensão de tomar os corpos como estáveis e definidos. Tudo isso torna cada vez mais impossível a pretensão de tomá-los como naturais (LOURO, 2003).
A partir do século XX o que predomina não é mais a imposição das disciplinas, mas a socialização pelas escolhas e pelas imagens que compõem novas estratégias de modelização. Na sociedade em que vivemos produz-se, portanto, outros corpos, outras realidades e outras abjeções. O prazer do banho, da toalete, do esforço físico é, em parte, uma satisfação autocontemplativa. Cuidar do corpo é prepará-lo para ser mostrado. Exibe-se o bronzeado, a pele lisa e firme, a flexibilidade, o dinamismo do estilo esportivo. No centro da vida privada, cuidar do corpo não é apenas fazer a toalete, tratar dele e defendê-lo contra os assaltos da idade: é também geri-lo de forma a obter sempre “mais” saúde.
Das terapias de toda espécie aos cremes e remédios, passando pelas danças e ginásticas, vai se atualizando, num esforço exaustivo, a potência dos corpos. São políticas de captura, atos de sacrifício, disfarçados de alegria obrigatória. “Corporeidade compreendida como labirinto de máscaras, pele que adere à outra pele, porém, nunca completamente, não apenas por subtração, mas pelo deslocamento de suas zonas de sombra e de luz” (SANT’ANNA, 1995).
À sociedade de produção segue-se a cultura do consumo, na qual a percepção do corpo é dominada pelas imagens que mostram “o ideal corporal”. Dessa maneira, as pessoas são persuadidas a alcançar a aparência desejável, não escapando, desta forma, da cartilha do totalitarismo fotogênico que prevê um ideário de maratonas a serem seguidas e vencidas. Um totalitarismo que acontece por meio do consumo que homogeneiza padrões de comportamentos e de gosto, atribuindo ao indivíduo a responsabilidade pela plástica do seu corpo.
Enfim, o século XXI, assim como outrora o século XX, administra o corpo como “objeto”, ao qual seria possível modelar dieteticamente, estilística, genética e tecnologicamente. A atualidade fomenta a idéia da perfeição indefinida do corpo. Este século transformou o corpo em superfície estratégica de controle, em enigma do qual é preciso extrair discursos de saber para poder administrá-los. O surgimento da microbiologia, da robótica e da genética, tornou plausíveis as promessas de um corpo fisiologicamente perfeito, iniciado pela ciência e a eugenia do início do século XX. O que era medicina preventiva no passado, preocupando-se em constatar doenças, passou a se caracterizar como medicina preditiva neste século.
De qualquer maneira cabe lembrar que os significados dos corpos deslizam e escapam não apenas porque são alterados, mas porque são objetos de disputas. Distintas instâncias político-culturais falam dos corpos, afirmam o que eles são, explicam-nos, dizem como devem ser. Decidem sobre a sexualidade, sobre a vida, o prazer, o nascimento e a morte (LOURO, 2003). O corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo (FOUCAULT, 2008, p. 22).

Referências Bibliográficas

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006.
______. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008.
LOURO, Guacira Lopes. Corpos que escapam. Labrys. Estudos Feministas (Online), Brasilia/Montreal/Paris, v. 04, 2003.
RODRIGUES, José Carlos. Tabu do corpo. Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ, 2006.
SANT’ANNA, Denise Bernuzzi (org.). Políticas do Corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995.
______. Corpos de passagem: ensaios sobre a subjetividade contemporânea. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.