terça-feira, 21 de setembro de 2010

"Teoria" Queer

Queer pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. Mas a expressão também se constitui na forma pejorativa com que são designados homens e mulheres homossexuais. Este termo, com toda sua carga de estranheza e de deboche, é assumido por uma vertente dos movimentos homossexuais precisamente para caracterizar sua perspectiva de oposição e de contestação. Para esse grupo, queer significa colocar-se contra a normalização – venha ela de onde vier. Seu alvo mais imediato de oposição é, certamente, a heteronormatividade compulsória da sociedade; mas não escaparia de sua crítica a normalização e a estabilidade propostas pela política de identidade do movimento homossexual dominante. Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora.
É preciso reconhecer que, no interior mesmo dos grupos chamados minoritários, se constroem divisões, experimentam-se fraturas. A política de identidade empreendida por esses grupos fixa uma identidade gay ou lésbica, ao elaborar uma representação do sujeito homossexual que é mais “legítima” do que outras. Faz-se notar “diferenças” entre os já “diferentes”.
Uma meta importante da política afirmativa é a extensão, para todos, dos direitos e condições sociais que historicamente haviam sido privilégios de uns poucos – homens brancos heterossexuais. Contudo, por vezes, essa luta deixa de lado a crítica mais contundente aos arranjos, às leis e às instituições reguladores da sociedade.
Judith Butler toma emprestado da lingüística o conceito de performatividade, para afirmar que a linguagem que se refere aos corpos ou ao sexo não faz apenas uma constatação ou uma descrição desses corpos, mas, no instante mesmo da nomeação, constrói, “faz” aquilo que nomeia, isto é, produz os corpos e os sujeitos.
Segundo os teóricos/as queer é necessário empreender uma mudança epistemológica que efetivamente rompa com a lógica binária e com seus efeitos: a hierarquia, a classificação, a dominação e a exclusão. Uma abordagem desconstrutiva permitiria compreender a heterossexualidade e a homossexualidade como interdependentes, como mutuamente necessárias e como integrantes de um mesmo quadro de referências. Analisada a mútua dependência dos pólos, estariam colocadas em xeque a naturalização e a superioridade da heterossexualidade.
Esses teóricos sugerem uma teoria e uma política pós-identitárias, cujo alvo consiste na crítica à oposição heterossexual/homossexual, compreendida como a categoria central que organiza as práticas sociais, o conhecimento e as relações entre os sujeitos.
Queer se torna, assim, uma atitude epistemológica que não se restringe à identidade e ao conhecimento sexuais, mas que se estende para o conhecimento e a identidade de modo geral. Pensar queer significa questionar, problematizar, contestar, todas as formas bem comportadas de conhecimento e de identidade. A epistemologia queer pode ser considerada, portanto, perversa, subversiva, impertinente, irreverente, profana, desrespeitosa”.
Nesse sentido, se é possível pensar numa pedagogia e num currículo queer, eles estariam voltados para o processo de produção das diferenças e trabalhariam, centralmente, com a instabilidade e a precariedade de todas as identidades. Ao colocar em discussão as formas como o outro é constituído, a teorização queer possibilitaria questionar as estreitas relações do eu com o outro. Busca-se desconstruir o processo pelo qual alguns sujeitos se tornam normalizados e outros marginalizados.
Tal mecanismo desconstrutivo poderia ser transferido a outras polaridades/binarismos como aquele que opõe o conhecimento à ignorância. Como sugerem teóricas/os queer, a ignorância não é “neutra”, nem é um “estado original”, mas, em vez disso, que ela “é um efeito – não uma ausência – de conhecimento”. Admitir que a ignorância pode ser compreendida como sendo produzida por um tipo particular de conhecimento ou produzida por um modo de conhecer.
Portanto, o grande desafio não é apenas assumir que as posições de gênero e sexuais se multiplicaram e, então, que é impossível lidar com elas apoiadas em esquemas binários; mas também admitir que as fronteiras vêm sendo constantemente atravessadas e – o que é ainda mais complicado – que o lugar social no qual alguns sujeitos vivem é exatamente a fronteira. Agora as certezas escapam, os modelos mostram-se inúteis, as fórmulas são inoperantes. A vocação normalizadora da Educação vê-se ameaçada. O anseio pelo cânone e pelas metas confiáveis é abalado.
Mais do que uma nova posição de sujeito ou um lugar social estabelecido, queer indica um movimento, uma inclinação. Supõe a não-acomodação, admite a ambigüidade, o não-lugar, o trânsito, o estar-entre. Portanto, mais do que uma identidade, queer sinaliza uma disposição ou um modo de ser e de viver.

Referências Bibliográficas

BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira Lopes (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2ª ed., 3ª reimpressão. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 151-172.
LOURO, Guacira Lopes. Teoria Queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, n. 2, v.9, p. 541-553, 2001.
______. O estranhamento queer. Comunicação apresentada no Seminário Internacional Fazendo Gênero 7, no Simpósio Temático A violência material e simbólica, agosto de 2006.
______. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.